29.7.17

RUELAS


Gosto de passear por antigas ruelas
sem pressas de alcançar as avenidas
pejadas de homens acabados de chegar
e de outros que ali contam madrugadas
 
Nessas ruelas há janelas de telhado
por onde a luz penetra afunilando os raios
trespassando vidros iluminando com doçura
os passos dos vultos caminhantes

Sei da velhice das ruelas das suas chagas
da sua solidão em noites pardas
e sei dos sonhos de outras noites
vejo-os ondulantes abraçados 
um riso em maré alta a subir a subir
a abrir de par em par as últimas janelas

Licínia Quitério

24.7.17

O DIA CLARO


Entra devagar no dia claro

Pensa-te nuvem
deixa fluir os teus contornos
Se uma ave cruzar o teu tecido
sê a ave
voa
aprende o seu piar
a construção do ninho
acolhe o novo cantar

Pensa-te rio
amacia as pedras
Se um peixe acontecer
sê o peixe
nada
aprende a subida das águas
entrega as sementes
espera da vida o seu retorno

Pensa-te um homem
uma nuvem enrolada à cintura
uma ave no peito

Estás agora mais perto das estrelas
iguais à flores do teu jardim
ou à vontade de entenderes
a escuridão do dia claro

Licínia Quitério

17.7.17

AMIGO


Os olhos presos no céu 
Fiel ao solo onde nasceu
Seguidor dos irmãos
Desenhador das ondas da planície
É nas horas de sombra
a bússola oferecida
à hesitação do caminheiro

Podeis pensar cipreste na Toscana
podeis

Eu o nomeio Amigo
esguio, forte, altivo
Um traço humano na paisagem

Licínia Quitério

9.7.17

OS VERBOS


Olhar
o céu da tarde

Pacificar
o turbilhão dos gestos

Ouvir
a música no búzio
a que chamamos coração


Convocar
o colo das mulheres
para os filhos dos homens
que partiram e ninguém sabe
quando voltarão

Inventar
um nome para a cidade
depois de Tróia, de Lidice, de Mossul,
e outras que Cassandra
não salvou

Cerrar
as portadas do dia

Preparar
a noite e os seus trabalhos
de segredo e olvido

Serão outros os verbos do amanhã
Todos no seu modo infinito
no seu tempo imperfeito

Havemos de encontrar
melhor conjugação

Licínia Quitério

2.7.17

SURPREENDE-ME



Faz-me uma surpresa
Gosto que me façam surpresas
Leio e escrevo, mas não encontro
histórias que me espantem
ou me façam chorar
ou me ponham a pensar
como acontecia no tempo
dos lobos maus
da fada-passarinho
da casa de chocolate
Para onde foram?
Conta-me
Ainda que mintas, conta-me
Eu vou acreditar
Ou então

Traz-me uma coisa que eu nunca tenha visto
Pode ser uma pedra, uma pequena pedra
igual a todas as que vi
Diz-me que a apanhaste
na estrada de Damasco

ou no deserto de Gobi 
Eu vou acreditar
Verdades não me tragas
Surpreende-me
mente-me
traz-me qualquer coisa que me faça rir
continuar a rir

adormecer


Licínia Quitério

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