17.7.09

CLARISSE 12



Ainda hoje Clarisse não fala de vulcões com a voz em sosssego. Nunca tinha visto algum, até ao dia em que pisou terra nascida quando Clarisse já contava alguns sedimentos. No declive, sentiu que o chão lhe ditava o avanço do corpo, sem que ela comandasse os próprios passos. Lembra-se do rugido do mar, lá em baixo, encorpado e escuro, ameaçando violar a juventude do monte, grande demais para que filho lhe chamasse. Recorda, com clareza, no longe-perto, a mudez dum rosto a esfumar-se contra o céu em fogo. E ela, Clarisse, olhando para trás e caminhando, encosta abaixo, cada vez mais perto da voz do profundo. Não sentia medo, mas um espanto que lhe punha lágrimas nas palmas das mãos. Tudo se confundia, na poeira dum tempo ignoto. Como num sonho dentro de outro e de outro ainda, sem porta para o despertar. Foi quando se apresentou um obstáculo sob os pés. Uma plantinha, verde, tímida, pedindo para não ser esmagada. Um aceno de vida nova, perfurando a lava, afastando a incomodidade da areia. Era da cor dos seus olhos e atrevia-se a enfrentar pequenos insectos que voltavam. Talvez peixes de outrora, abandonados no confronto brutal entre o fogo e a água. O corpo de Clarisse reganhou vontade e gesto. Sorriu à planta e retrocedeu. No perto-longe, o rosto esperava-a e mostrava-lhe uma estrada polvilhada de caminheiros. Clarisse aceitou a estrada e disse baixinho: Pareceu-me avistar uma rola de peito róseo. O rosto explicou, condescendente: Não as há nesta latitude. Hoje gostou de rever o registo no álbum. Só ela consegue divisar o rosto contra o céu. Uma presença, uma espera. Clarisse sabe que há uma paisagem que lhe pertence e a que voltará. Que importa que seja lava, ou mar, ou planta, ou fogo? Tudo o que for lá será.

Licínia Quitério

10 comentários:

Paula Raposo disse...

Que maravilha, Clarisse! Gosto de te ler. Beijos.

Mateso disse...

A terra, o mar e a palavra. Recortes do sentir.
Lindo.
Bj.

hfm disse...

Estou a gostar muito desta Clarisse!

Justine disse...

às vezes basta uma planta, mesmo pequenina. Desde que seja verde...

Lídia Borges disse...

Maravilhoso!
A vida... sempre maior do que a morte!
O renascer das cinzas, pelos caminhos da memória.

Um beijo

Maria disse...

Importa que seja vida!
Gostei.

Beijo, Licínia

M. disse...

Posso só dizer que achei lindíssima esta memória de Clarisse? Este meu "só" parece pouco mas tem lá dentro muita coisa.

Graça Pires disse...

Ficou-lhe um sismo a ressoar nos ossos e na memória.
Um beijo Licínia.

Alberto Oliveira disse...

... se tinha razão Clarisse! Quem não olhava para trás era eu que não posso com vulcões a correr atrás de mim, com aquela lava vermelho-escura a ver se me dá cabo dos sapatos.
O primeiro vulcão que eu vi em acção foi o Etna que eu pedi muito ao meu pai para o conhecer de perto (sabia lá dos perigos que corria, era pequenino mas destemido e o meu pai não me ficava atrás na maluquice, coitado, que me levou a Itália de propósito e para me fazer a vontade). Quando aquela pasta incandescente começou a descer a encosta, separaram-se dela centenas de bolas de fogo em direcção a nós e eu gritava "Et(n)a é pra mim! Et(n)a é pra ti! (para o meu pai) e por aí fora... Ficámos com as solas dos pés em brasa no fim do dia. O que a Clarisse me veio lembrar...

Arábica disse...

Clarisse dos elementos.
Que serão nela, dela.

arquivo

Powered By Blogger
 
Site Meter